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Dissolução. Parte II

Conseguiu um emprego
Passou a usar terno e gravata
Abandonou a viagem para comprar a TV mais moderna do mercado
Mentiu para sua mulher quantas vezes foi preciso
E se tornou só mais um

8 inversos

Não desenhe, rabisque.
Não pinte, garranche.
Não fotografe, materialize.
Não escreva,             .

Não construa, intervenha.
Não discurse, cuspa.
Não se aprimore, deprecie-se.
Não se liberte, liberte-se sempre.

E depois faça tudo de novo. Só que ao contrário.

Dissolução

Entregou-se à Arte
Subverteu o visual de menininha
Trocou as séries de TV por Nietzsche
Se apaixonou diversas vezes
E conquistou o mundo

Varanda com vista panorâmica

um vintém
um vintém, meu bem
pra te comprar uma flô
mas me acabou o amô
quando vi maria luz
na barraca de cus-cus.
ofereci-lhe um vintém
ela sorriu e disse "obrigado, meu bem"
que lindinha naquele vestido
até esqueci que ela era noiva e já já teria marido...
um vintém
um vintém, meu bem
pra te comprar uma flô
mas meu dinheiro acabô
pra ti só tenho meu amô.
mas nem isso cê quer mais
da sua varanda dá pra ver a padaria, a barraca de cus-cus e o açougue do Tomás.

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Hoje conheci um cara na volta para casa. Alto, branco, ombros largos. Magro, chutaria uns 77 quilos. Como de costume, custei a dar atenção. Usei meus sorrisos de simpatia por educação mas evitei render assunto - só falava quando solicitado. Tem dias que fico mais antipático com quem não conheço mesmo. E também, tem cada um,  né, que sai abrindo a vida pros outros num ônibus. Ele, pelo visto, fazia isso. Mas enfim. O rapaz tava com uma cara ótima. E falava como se me conhecesse! Usava até alguns termos e gírias que eu uso com amigos. Era familiar e agradável aos ouvidos. O caminho até minha casa não era longo e aparentemente continha justamente a distância necessária para que ele finalizasse a história. E na verdade eu torcia para que isso acontecesse. Se fosse para ouvir balela de um estranho, que seja uma balela sem cortes - e até o final. A balela, aliás, era sobre uma mulher. Talvez isso justificasse a cara ótima. Ele me contou que tava voltando da casa dela, e que tava muito contente. E que há pouco tempo eles estavam relembrando memórias antigas, da época que eram amigos, já que se conheciam há uns sete anos. Entrou em detalhes. Foi estranho. Então abriu a carteira e pegou uma foto dela. "Só que agora o cabelo tá um pouco mais longo", disse. Morena, de olhos escuros. Meio indiazinha, talvez. Muito bonita, até. Fiquei com inveja, confesso. Inveja ruim mesmo. Cobiça. Meio que por respeito, meu único comentário foi um discreto silêncio, seguido de um tímido "...fotogênica...". Ficou na cara o que eu estava pensando. Mas ele seguiu em frente enquanto eu devolvia a fotografia. Daí ele contou que os dois choraram enquanto falavam dessas lembranças, e que o laço que eles tinham era muito forte. E depois disso ele pôs as duas mãos nos bolsos e não falou mais nada, como quem estivesse pleno com o que acabara de contar. Fiquei em silêncio também. Percebi que, o tempo todo, o cara conversava muto mais com ele mesmo do que comigo, muito embora isso parecesse a mesma coisa. As palavras eram proferidas para dentro e para fora ao mesmo tempo. Entre elas e os pensamentos, eu era apenas um intermediário. Ou não. Assim contornamos a última esquina do trajeto, depois de ter descido o longo morro da Rua Prefeito Ribeiro. Estávamos bem perto da minha casa. "Falou, meu amigo (forcei uma intimidade nesse momento), boa noite e boa sorte aí com a sua moça". Ele acenou com a cabeça e sorriu, batendo uma pseudo-continência. Andei em direção ao portão de casa e, estranhamente, ele também. Passou minha frente, puxou um molho de chaves idêntico ao meu, com cinco chaves e um pen drive azul, e abriu meu portão. Deus, ele tava abrindo meu portão! Bolei. Fiquei meio paralisado por um tempo, sem reação. Mas aí já rapidamente apalpei o bolso da minha bermuda e percebi que minhas chaves estavam lá, com as cinco chaves e o pen drive azul. Corri até o portão e quando entrei ele já atravessava os cômodos da minha casa, cumprimentando meus pais. Esvaziei os bolsos. Fui conferir se minhas chaves se encaixavam na fechadura. Sim, se encaixavam. Abri a carteira e a fotografia estava lá. Lembrei que em nenhum momento havia devolvido a fotografia ao rapaz. Ou eu tinha? Não! Essa era minha! - e tudo fez sentido. Aquele cara era eu. Meu duplo. E me encantei pela mulher dele, que, na verdade, também é minha, embora não a tivesse reconhecido. Então saí. Fechei o portão. Caminhei até o meio da rua e olhei para minha casa. Fiquei parado um pouco, em silêncio. Joguei as chaves no boeiro e coloquei as mãos nos bolsos, novamente em estado meditativo. "Nada está faltando", refleti. Daqui pra frente vou deixar que ele assuma minha vida.