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detalhes do sabiá

ontem você me lembrou daquele dia no parque

o sol me ofuscava e você quis trocar de lugar comigo, mas seu cabelo estava lindo no contra luz. era só um detalhe. jamais sairia dali. / descrevi seus olhos. amarelo em dias claros, com tons de verde musgo e caramelo. deixei o coco gelado cair. detalhes. / com a ponta dos dedos deslizei no seu rosto. falei que você era linda. te tirei um sorriso. / olhei tanto para você que, sem pronunciar uma palavra sequer, talvez tenha dito mais do que deveria. na hora não percebi que estava transbordando. foram detalhes. / você elogiou minha camisa azul, ganhou no improviso um anel de presente e, pela primeira vez, me deu a mão para andar. o que nos edifica são os detalhes. / caminhamos por horas e conversamos sobre quase todos os assuntos do mundo. se o dia não tivesse que terminar, hoje ainda estaríamos lá. mas só por um detalhe de calendário, domingos sempre terminam. / já parecia despedida. já parecia que não seria a última. e hoje eu lembro os detalhes daquele dia no sabiá. / 

quanta saudade.

furnas

sonhos amanheceram no interior de minas gerais.a cidadela agonizava em roncos de máquinas. algo maior estava para acontecer.

olhos entreabertos, cabeça no lugar. no coração. ventos traziam o chamado do concreto e da natureza. do antigo e do novo, ambos reutilizáveis. recicláveis a ponto de transparecer esperança.

todo clímax é hostil. a represa inundou novas formas de vida. tudo que um dia foi vivo estava ali, observando. me observando.

a tempestade elétrica se fundiu com a noite. pirotecnia nas nuvens. nos encharcados sentimentos. fazendo do medo, paz. redenção.

só de abrir a boca a ambição comeu terra. o caminho é rico, mesmo sem moedas nos bolsos. nele tem eu e você. tem películas analógicas e balões vermelhos.

como aquele seu sorriso, a redenção está na pureza. e assim o curso do rio desviado aprofundou-se nos lençóis do coração de um menino-combatente: 

liberdade há de ser maior.

hemorragia

é
tua boca sangrando a minha
    naquele batom vermelho.
é  tua prova, tua prosa,
tua ideia tomando nota/
                em mim.
       dizendo que vim. dizendo que sim.
   é abraço de novo mundo/
            de novo tudo. de todo modo.
    é encontro sem cronometrar tempo
         nos lençóis construir templo/
         perder manhãs em horas desregradas.
   é troca de roupas,
                veste de nova família/
     em camisas | ao avesso.

e essa inundação/ além do que vai dar,
                  eu não preciso estancar.

Central do Brasil

vergalhões de aço nasceram de substantivos primitivos.
a pino, a Central do Brasil. faminta.

suor e sangue secaram debruçados em dissertações singulares.
a carcaça caminha cansada na calçada
o asfalto transpira meio dia.

bicho homem evolui mais uma vez.

setecentos mil pêndulos diários. imortais o ano todo.
seres e coisas, cimentos e abstratos. corujas na alvorada.
estados, processos, acertos e erros. morcegos no vão.

substância e existência
ferro fundido
designa ser (designa o ser)

substantivado. como os galhos de uma árvore

que amigo

Olha como é nossa maturidade, sádica. Durante toda a infância vivi sem um amigo imaginário sequer. Nunca precisei de um. Hoje, aos 22, tenho vários. São vocês, leitores do blog. Que entram aqui diariamente, comentam e debatem os textos numa mesa de bar. Então eu queria dar-lhes um sincero "muito obrigado". E o faço de coração, gente. Se vocês fossem reais isso aqui não existiria da forma que é.

nota de rodapé

das palavras minhas que brotam de ti
           todas são chamadas nossas.
então nunca fale meu poeta
  quando a poesia for você.

peixinho

em luzes apagadas, te aponto estrelas pintadas em céu,
mas se é pra clarear, nos amamos também em dia de sol.

à casa

em palavras te desenhei na parede
denotações disfarçadas em versos.
inversamente, ávida, você invadia a vida.

desde a parede, portas abertas
versos depois, móveis na casa.
             , vir aqui não dói nada.

então sai dessa praça
cessa pirraça
vira e disfarça
desfaz toda a farsa
deixa o resto e me abraça
e mora em mim que é de graça.

insônia

hoje,
de lembranças partiu a insônia.
do vazio que é a distância.
da teimosia que me fez esperança
em ver-te de novo de novo
amanhã.

nota de repúdio

É sobre o último post. 
Não era para ser uma auto-crítica. Soou demagogo. Então vou me retratar (só como exercício).

É, eu sou um merda. Não por recusar a caridade, mas por compreender a situação e ainda assim não ter o desejo essencial de mudança interna. Não me sinto culpado pela miséria do outro, me sinto culpado pela minha indiferença. Mas ela é quase compreensível. Quando se vê tanta pobreza na sua calçada, os olhos calejam. Fazê-la invisível é a única forma de não se machucar. Não somos monstros, mas as vezes somos aspirantes a um - coisa de classe média mesmo. Status, poder, dinheiro. É isso agora? De onde venho, na infância, costumávamos estar entre o razoável e o confortável, sem nunca deixar faltar. Num bairro sem miséria, mas relativamente pobre e violento, aprendi que nesse país tão desigual o luxo e ostentação é moralmente vergonhoso. Mas hoje passo todos os dias por aquele estacionamento da Globo abarrotado de carros importados, e eles lentamente me lobotomizam. É como se minha vida fosse esse um puteiro, e eu, um projeto de prostituta que se vende por arroz e feijão (mas também por cocaína). Entre o necessário e o destrutivo. Mas nem sempre foi assim. Houve aquele tempo do futebol na rua, pureza. Vídeogame no vizinho. Pique-esconde no quintal de casa. Biscoitos roubados no supermercado. Inocência. Época em que não precisávamos de ideais, mas que agora por necessidade ou maturidade eles ocupam a mesma gaveta de amores platônicos, revistinhas do Batman e livros socialistas. E ideais são assim. Incômodos. As vezes eles me tiram a leveza me fazendo entender que o placar está Realidade dois, Sonhadores zero. E como já sabemos, três a zero é capote.

leite derramado

Outro dia paguei a conta de um cara no supermercado. Deu doze reais. Ele levou três unidades de leite em pó, uma delas para crianças menores de três anos. Hoje, um garoto me pediu dinheiro na rua. "Qualquer moeda", ele disse. Queria centavos. Eu tinha dois e setenta e cinco no bolso, tudo em moedas. Não dei nenhuma. Não sabia se era para leite. O cara do supermercado, antes de qualquer coisa, queria que eu passasse seis unidades de leite em pó, duas delas para crianças com menos de três anos. A conta daria quase vinte e quatro reais. Eu devia ter uns setecentos na conta corrente. E uma quantia bem maior na conta poupança. Me recusei, paguei a metade. Doze. Doze. Uma das unidades, que era para crianças menores de três anos, ficou nas prateleiras. Nesse mesmo dia fui a uma festa em Botafogo. A comanda deu cinquenta e seis reais. Foram cervejas. Ele queria leite. O menino da rua, centavos. Mas eu não dei. Nesse dia da festa o posto de gasolina me custou vinte e oito reais. Sobrariam moedas. Pagaria o leite. Mas era GNV.

Eu sou um merda.

horóscopo 2.1

SAGITÁRIO
vai que é tua.

horóscopo 2.0

ESCORPIÃO
quinta-feira tem  sexta tem   sábado tem   domingo tem   segunda tem   
terça tem   quarta tem   quinta tem   sexta tem   sábado tem   domingo tem   
segunda tem    terça tem   quarta tem    quinta tem    sexta tem   sábado tem   
domingo tem   segunda tem   terça tem   quarta tem   (essa quinta não)   
sexta tem   (esse sábado não)   domingo tem   segunda tem   terça-feira tem. 

meio amargo

deitou-se ao meu lado. lá longe, de casa. olhou-me nos olhos. lá longe, instintiva. sorriu-me tímida no silêncio. lá longe, enquanto eu provava do mais legítimo placebo. uma insípida e volumosa pedra de gelo. coloquei-a na boca imaginando uma trufa. enganei os sentidos. toquei nela, na tela. lembrei o gosto do chocolate. senti seu aroma. quando devolvi o sorriso, também tímido, de canto, ambos rimos juntos. e assim a pedra de gelo derreteu em minha boca até o amanhecer. estava deliciosa.

imoral imaterial

        não é só carne.
          é devoção.

parte sacrilégio,
faz-se religião.

fim de semana/resto de mês

os dias não são o bastante pra quem:
                                    quer se entregar


                                    quer se entregar, e enfim
o tempo foi quem deixou-se acreditar.

  foi
o tempo
          deixou-se acreditar, e enfim
                                    vem se entregar,
                                    vem se entregar.

porre docê

uma dose de verossimilhança
    duas de insolubilidade, nessa mesa de bar que é o chá das três

sopraram os ventos. levaram angústia. trouxeram reencarnação.

aqui jaz a tormenta. o silêncio conforta. são tempos de paz.

me visita. abre minha porta. me flagra nessa embriaguez

e vem beber em mim.

escarlatina

desabo em forma de cobertor na pele branca
desarmo travas, medos de monstros do passado
deságuo afetos solúveis no suor/ somos escarlatina

as marcas {de quem não sabe morder}
    designam, significam
        são ilustrações em você

a superfície branca/ riscada em vermelho/ faz-se em cor/ fez-se amor
do chão, com o tato, procuro o teto/ e toco o céu
luzes de constelações cadentes/ complacentes

as marcas {de quem conversava com estrelas}
    designam, significam
        são ilustrações de nós dois.

retorno ao âmago

falidos os deuses
abnegada a razão
renunciado o outro novo;
fragilidade, essência

é

o homem,         um próximo deus
a pureza,        nossa última virtude
e a poesia,      [ainda preenchível]




.

fronteiras

só a linguagem é capaz de nos emancipar
                                        da massificação

/na flor do dicionário

já assistiu o céu por uma janela de avião

e rompeu estados
irrompeu Estados

sentiu o perfume de Minas

e provou as horas da noite gelada
povoou a madrugada.

há saudade/

{no verde musgo
entre o amarelo desbotado,
e o castanho cintilante
através do negro renegado}

/na flor daqueles olhos.

Poesia, nunca mais /segunda leitura

eu discordo,

teus versos já foram escritos
mas jamais postos em papel.

e como são levianas as versões impressas.
tolas. insuficientes.

sem lápis, poemas particulares.
compartilhadamente particulares.

alguns, ditos. a maioria, silenciados.
nem por isso menos interpretáveis.

poesia, nunca mais.
um dia a casa cai (para nosso bem).

poesia é o toque. é a troca.
em sonetos de olhares teus.

é a construção da pureza.

vamos escrever juntos,
ler os rascunhos
     e guardar o resultado pra gente.

(re)construção

OS R O T E I R I S T A S
                       O
                       M
                       O
                       S
                       N
                       Ó
                       S

                       ou seria agora o universo?

rebentação

é pelo calo encruado, reprimido

é o espelho/é o ímpeto

e o céu crepom dos novos tempos

são cicatrizes
são manchas
são marcas
      da libertação.

Rascunho

converse comigo.

pureza (sentimentos empacotados)


é o cachecol azul
é a cachaça, o gole de fidelidade
é o abraço no tempo
é O Vento cantado a distância
é a prosa, é o oooww
é ela. pureza é a prosódia
pureza é o pão de queijo

.leito


quanto mais eu organizo
re-faço meu leito

poderia ser aquele
que trocou o amor por liberdade
jornalismo por poesia
inconsciência. coração.

a grande sacada do destino é me deixar pra morrer sozinho

​pseudo-whatever

O limite do pedantismo é como a zona de conforto num lápis. Não adianta apontar (e aprimorar) tanto, se no fim o desconforto de escrever com um cotoco vai ser maior que os benefícios e ​recurso​s​ da ponta fina. ​E ​a perfeição que ​fique na ambição do diabo​! O bonito da vida é justamente a escrita errante, a ponta quebrada e o conhecimento incompleto​. Ainda assim, uma pessoa com capital cultural infinito é sempre(?) notável. O problema é quando isso se torna uma constante auto-masturbação elementar dentro de um ciclo social. Ou quando o consumo desses signos cultuados pela intelligentsia juvenil carioca se torna uma necessidade para a obtenção de aceitação e veneração num grupo. Ah, ele é hipster​. Pseudo-cult​​, pseudo-erudito. Ele é pseudo-whatever, não importa. É um imbecil. Enquanto o conhecimento for consumido sem ser mastigado e vomitado para fora no intuito de deixar pessoas boquiabertas, a digressão essencial não será feita. E o eu foda que você acredita estar construindo será patético. / Pelo menos pra mim, que não fico mais impressionado com a retórica da zona sul. / Eu não espero uma juventude cheia de referências na literatura, rock e política. Eu espero uma juventude que pegue todas essas citações acumuladas e transcenda, que absorva-as para fazer as próprias. Nosso mundo não precisa de reprodutores de conteúdo. Precisa de desencadeadores de novas narrativas.

Há quem seja refém da própria competência. Mas somos iguais até nos mais complexos desencontros. Reflitamos.

fome de mundo



deixa que eu te consumo


.

Para saber que lembro dos teus males

se fosse o toque, poesia

mas ela é acre
ela é ocre

se fossem palavras
desrespeitadas pelo tempo

mas ela é acre
ela é tosse

se fosse a silhueta
a intimidade na penumbra

mas ela é acre
ela é câncer

se fossem lembranças
na gaveta

mas ela é acre
ela é acre
ela
é
acre

se fosse poesia, tudo o mais

ela seria doce
e seus cílios, textos

mas ela é acre. e eu não escrevo poesias.

retorno

deixei o Fantástico            
e caí no real,                      no duro, no crível

torci o tornozelo.

O curioso caso do drogado do 2º andar

Investigações primárias

As suspeitas começaram logo na primeira semana de Sandro, o novo inquilino do conjugado 202. Logo pela manhã, Roberto pensou ter escutado uns gemidos estranhos no apartamento ao lado. Investigador, acordou um dia mais cedo, arrastou o sofá da parede de centro e concentrou-se nos ruídos do vizinho. Na lata! Ouviu algo como um "aaaaaaaarhhhg, que isso!". Intrigado, por mais dois ou três dias Roberto pôs-se a repetir o ritual. Até arrumou um estetoscópio com o cunhado, o clínico geral não oficial da família. No ofício, parecia um perito, chegava a passar legitimidade à pataquada, reconhecida pelo mesmo como "um serviço à todos os condôminos". O resultado, porém, não pudera ser outro. Sessões de gemidos, dia após dia: "uuuurrhh", "hmmmmmmmm" e "shhhhhhhhhh, eiiiita caralho!" foram minunciosamente percebidas por Roberto, que, conservador que só, entrou numa pilha de nervos.

Há de ser droga

"Há de ser droga! E droga pesada. Conheço bem esse tipo". Roberto indagava para a mulher. Preocupado com o péssimo exemplo que o novo vizinho poderia dar à sua filha, já com seus 17 anos, Roberto não se conteve dentro das calças. Enquanto o rapaz fazia "aquilo" religiosamente antes de sair de casa, por volta das 8 da manhã e ao retornar, já perto das 23, Roberto maquinava como avançar em sua empreitada individual de desmascarar o inquilino. Sandro, o tal novo vizinho, dividia parede com parede o segundo andar de um pequeno edifício na esquina da Soares Cabral com a Laranjeiras, pouco depois do túnel Santa Bárbara. O rapaz, bem jovem inclusive, trabalhava o dia todo fora, e ao que constava na ata do condomínio, na área de Tecnologia da Informação. Não para Roberto. "Eu sabia que esse cara tinha algo de estranho. Não fui com a cara dele desde que veio conhecer o conjugado. Há de ser traficante, só pode. Na idade dele o máximo(!) que eu conseguia trabalhando era o Catumbi. Agora veja você esse camarada querendo ganhar dinheiro mole", reclamava de noite com a mulher, que sempre concordava fazendo questão de não dar corda.

A confirmação

A petulância de Roberto era admirável. Preparou, em completa ardilosidade, uma arapuca para abordar Sandro no corredor, acompanhando-o dessa vez não apenas com os ouvidos presos à parede, mas vigilante através do olho mágico. Contudo, a abordagem foi simples e direta. Assim que Sandro abriu a porta, Roberto lançou-se ao corredor. Teve um choque. Petrificado, sequer conseguiu dar bom dia ao garoto, que passou com os olhos ardentes, lacrimejantes, em passos curtos e rápidos. Ainda assim, deu um saudoso bom dia e rumou em direção às escadas. Roberto simulou um esquecimento de chaves, tornou a abrir sua porta e voltou para seu apartamento, atônito. "Eu sabia! Eu sabia!" disse à mulher sem deixar que a filha ouvisse, e continuou "Tinha que ver como ele andava como um marginal! Há de ser cocaína! E logo de manhã? Tinha que ver a postura dele, Carmen, os olhos vermelhos, tinha que ver. Eu sabia! Que cara escroto!". A mulher consentiu com a cabeça enquanto se vestia para mais um dia de trabalho e completou com um singelo "deixe só sua filha te ver usando esse palavreado". Indiferente, Roberto tratou de espalhar a notícia pelo edifício. Em pouco tempo todos os condôminos já sabiam do caso do drogado do segundo andar.

Cinismo inconveniente

Certa sexta-feira, sem que Roberto conjecturasse nada, os dois se encontraram subindo as escadas. Sandro, por sua vez, levava um engradado de cervejas numa sacola de plástico. Roberto, malicioso, já pensou que o garoto era cheio de vícios, um aspirante ao alcoolismo. "Oi, seu Roberto", disse Sandro para espanto do outro, "Essa semana conheci sua filha aqui pelos corredores. Gente fina, de família". Roberto, boquiaberto e sem saber o que dizer, sequer fez esforço para filtrar os pensamentos maldosos que atravessavam sua cabeça, "É, mas ela não bebe cerveja" - a frase logo foi atingida por um pensamento auto-recriminador, além da vergonha de si próprio - Sandro, sempre complacente, foi educado e, na opinião de Roberto, muito do cínico. "Que isso, longe de mim. Essas cervejas são para uns primos que hoje vêm me visitar. Eu nem bebo, vou ficar no suco", riu. O diálogo findou-se com a chegada do segundo andar e Roberto entrou em casa cerrando os dentes, certo de que aquela sexta-feira seria o dia em que todos os viciados da Zona Sul usariam variados tipos de drogas bem ao lado de seu apartamento. Sua filha, veja só, se não abrisse o olho poderia estar lá, cair na lábia, caso ficasse dando trela ao vizinho. A noite da menina terminou com um sermão de duas horas.

Maldita providência 

Certo de que deveria tomar providências, Roberto pôs-se a ligar para a polícia dois dias depois. Como tinha conhecidos na 5ª DP, ligou diretamente para o celular de um bom conhecido dos tempos da escola. "Gomes, vou te dar um trombadinha de bandeja. Cara barra pesada. Um moleque, garoto mesmo, mas barra pesada. Traficante, meu amigo. Decerto! Há de ter muito pó na casa desse camarada". Assim, três homens fardados irromperam a manhã de uma terça-feira na esquina da Soares Cabral com a Laranjeiras, subiram as escadas e bateram a porta do 202, no polêmico conjugado de Sandro. "Alô, Sandro! Polícia", e nada. "Alô, Sandro, nós vamos entrar!". Sem esperar ou ponderar por três minutos que fosse, Gomes deu um tapa no ombro do cabo Rafael que, por sua vez, entendeu o recado. Enfiou o pé na porta do garoto com tanta violência que a fechadura foi parar do outro lado do conjugado. Os três sacaram suas armas e imponentes foram procurar o delinquente. Roberto, em êxtase, foi atrás.

O curioso caso do drogado do segundo andar

Quando os três mosqueteiros, seguidos por D'artangnan, chegaram ao banheiro de Sandro, lá estava ele, submerso numa situação patética. Vestia uma cueca roxa estilo tanga, meias sociais pretas e terminava sua higiene bucal. Com os olhos esbugalhados em tom vermelho escarlate, deixou o pote de Listerine cair no chão e prontificou-se a cuspir o resto do anti-séptico na pia, seguido de um ardente "ssshhhhhhh, aaarrrhhhhh". No fim da sessão, uma lágrima involuntária cruzou seu rosto.

Sem ressalvas

Visto que o real problema do drogado era gengivite, Roberto afundou-se em vergonha. Foi retaliado pelo síndico, que além de multá-lo enviou uma carta de reprovação explicando o mal entendido a todos os condôminos. Também foi obrigado por sua mulher e filha a pedir desculpas ao especialista em Tecnologia da Informação, algo que nunca chegou a fazer, apesar de ter dito o contrário para elas. Condolente, trocou a fechadura da porta do rapaz e comprou um frasco de Listerine sem álcool de presente para ele, que, sempre complacente, foi educado e aceitou.

Metade pepperoni, metade calabresa

Morador da Barra da Tijuca. Patrão. Dono de imóveis na Região dos Lagos e casa de veraneio na Região Serrana. Saiu numa matériazinha da Pequenas Empresas & Grandes Negócios do último mês. Antes de assinar a carteirinha de emergente comprou um Camaro, coisa de gente que sabe como se inserir na sociedade. Gente finíssima, apesar do ego. As crianças já estão matriculadas no São Bento. O mais velho ganhou uma Tucson por ter entrado na ESPM e a esposa só vai da Zona Oeste pro Shopping Leblon de táxi - com vidros fechados e ar condicionado no máximo, mesmo no inverno. Nas próximas férias o destino é Bariloche. Clichê, eu sei, mas esperar criatividade dessa gente é que não dá. As preferências gastronômicas são pontuais: Porcão para ele, comida japonesa para os filhos.

Só que na hora da pizza... Ah, a pizza.

Essa é metade pepperoni, metade calabresa. A família toda adora. Por mais que não transpareça, o subúrbio é uma mancha encardida. Difícil de tirar e perceptível somente nos mais íntimos e inconvenientes detalhes. Você me passa o ketchup?

Ah, o subúrbio

    Só ele é capaz de justificar o luxo de um pão com ovo numa manhã de sábado em vez da torrada com Nutela numa terça-feira às 9 antes daquela(!) caminhada no Aterro. Pra quê manteiga, se a margarina é cremosa e o comercial diz que faz bem pro coração? Quando não é isso, raspar todo o pote de requeijão antes de jogar fora é essencial. Esses caprichos estão caros e só o todo poderoso sabe sobre o dia de amanhã. Mas a novela na nova tela plana 42 polegadas tá garantida.
    É, fazemos parte dessa classe média que quanto mais aumenta seu poder aquisitivo mais aproveita as promoções do Guanabara, sejam as de 2 reais ou 20 centavos. E talvez sejam essas pequenas inter-relações com o mundo que reforcem nosso caráter. Não é preciso apenas dar valor ao (eventual) pouco dinheiro, mas a racioná-lo de forma eficiente mesmo que isso signifique agir irracionalmente - como quando você compra a maldita tv e o pote de Nutela não.
    O cotidiano é repleto de detalhes que servem como destinadores para a grande reflexão que qualquer suburbano precisa fazer (e refazer). São eles o pão com ovo, os potes de requeijão e Nutela, a ida ao Guanabara, o delivery de comida japonesa, o ratatá na Lapa, a televisão de led e o bilhete único. Eles ilustram perfeitamente qualquer suburbano e seu comportamento. E a questão aqui não é estereotipar o camarada, mas justamente o contrário. É mostrá-lo que a problemática não é grana, mas atitude.
    Ok, há quem acorde e vislumbre da janela de casa o nascer do sol com o Cristo Redentor no contra luz. Mas a cada mesquinharia cotidiana a gente escreve "Bangu" na testa. Ou Méier, ou Vila da Penha ou Nova Iguaçu. Ou seja lá de onde formos. Minha mãe, por exemplo, sai de Caxias para fazer compras em Irajá - o Guanabara de lá é maior -, prova real de que o subúrbio ignora fronteiras.
     De todo modo, prova real de que o subúrbio somos nós, que reforçamos e incitamos ele em nosso íntimo. Levamos ele como um boi leva sua marca a ferro. Mas a sina, é bom que se ressalte, legítima, não precisa ser eterna. Basta comprar um pote de Nutela quando der na telha. Só não se esqueça que esse tipo de produto você não encontra na Páscoa Encantada do Guanabara.

Um milhão de reais em ovos de ouro

Quando João meticulosamente escalou todo o pé-de-feijão e encontrou a Galinha dos Ovos de Ouro, algo nessa história infantil impreterivelmente estava errada. E isso por uma simples razão: não se põe grana no meio dessas coisas.

Eu me pergunto quem foi que pensou que barras de ouro orgânicas seriam educativas. Não seria mais saudável uma Galinha dos Ovos de Kinderovo, cada um com 20 g de chocolate ao leite com uma super surpresa dentro, já que o público alvo eram as crianças? Pois é, então dar merda no desenrolar do roteiro era mera questão de tempo.

Enfiam nessa história, além de um milhão de reais em ovos de ouro, um pé-rapado e um gigante bobão. O resultado não poderia ser outro senão um desfecho com um João trapaceiro, ladrão, assassino e que cinicamente termina com um final deliz mesmo depois de tanta tragédia, inclusive um latrocínio!

Moral da história: tenha o seu feliz para sempre, João, faça tudo pelos ovos de ouro.

é /r/o/d/ã/

tem também Os sofrimentos do jovem Werther, do goethe.

Não é goéte. É guête.

E você é um pedante chato, egocêntrico,
 preconceituoso, escroto, zé ruela.

é...

Spraite com bigue âipou mais tarde?

Nem juvenil nem rodado demais

     Exite um momento da vida em que você percebe que nem tudo que reluz é ouro, nem tudo que brilha é prata e nem tudo que explode é dinamite. Os sonhos da juventude já se foram e os heróis em vida começaram a morrer. E quando digo "heróis em vida" falo daquele menino, o Jonatan, que na terceira série tirava 10 em tudo e alimentava nossas esperanças de que, sim, teríamos estudado com um gênio. Bom, agora ele é só mais um que paga faculdade. Daniel e Adriano, prodígios na cena do rock da cidade, agora medem esforços para justificar o fracasso de um álbum que quase não existiu. Até o Gabriel, o Biel, que era federado no Fluminense, titular das categorias de base desde os sete anos... nada. Dispensado. Fadado ao chopp do Bar do Zeca toda sexta-feira entre porções de frango à passarinho e aipim com carne de sol.
     Chegar na faixa dos vinte anos é desafiador. Você não é nem juvenil nem rodado demais. Desistiu de ser uma personalidade premiada mundo afora mas sabe que ainda pode ser muito bom na sua área. E todos os dias essa incerteza dicotômica te aperta os pulmões. A concorrência intimida, o mercado está saturado, o apartamento na Zona Sul está cada vez mais caro e você precisa ler A Divina Comédia e Fausto, tendo sequer terminado Dom Casmurro. Quando te chamam para uma cerveja você vai com a consciência pesada devido aquele(!) trabalho da faculdade. Nada que meio copo não resolva. O salário de estagiário te restringe ou a ter um iPhone, ou a viajar no fim do ano. Ou um, ou outro - o poder de fazer os dois denunciaria que seu contrato na verdade é de efetivado.
     Problemas estruturais à parte, diariamente o sistema te esgana pelo pescoço enquanto você lembra que não estuda engenharia. Viver, como diria o poeta, "à moda caralho", somente é opção para os que corajosamente enfrentam a vida como uma partida de Space Invader. E enquanto isso não acontece com a sua, você divaga sobre a existência e a necessidade de frequentar regularmente um psicanalista. Sim, chegar na faixa dos vinte é desafiador. É a fase da grande transição. Ou, para os desatentos, é a fase de entendê-la. Você precisa agir e pensar como adulto mesmo que ainda tenha licença poética para ser uma criança retardada. E no fundo é realmente isso. Só que entre Dante Alighiere, Goethe, Machado de Assis e Fifa 2013, há uma eterna sabedoria que diz que, impreterivelmente, 3 a 0 é capote. E isso ninguém tira de você.

O Metrô, episódio III

Ilmo. Sr.Governador

Hoje experimentei o novo carro do metrô, aquele que vem substituindo toda a antiga frota.

Não gostei.

Contudo, admito que os novos carros são realmente incríveis, meus parabéns. O ar condicionado é potente, fundamental nos dias quentes do verão carioca, mesmo tendo me deixado meio gripado. Os carros também são robustos, têm mais espaço interior e a sacada de tirar as divisórias entre os vagões é genial. O tempo entre as estações também diminuiu, concluí que eles são mais velozes e silenciosos. Gostei que os carros consomem menos energia, também. Vi isso na publicidade que ficava passando nas televisõeszinhas pequenas dentro deles. E os bancos? Bem dispostos, de maneira que mais pessoas possam se sentar. Pareceu tudo muito bom. Mas só pareceu mesmo. Porque na primeira viagem percebi o quanto as coisas estão mudando entre nós, Governador. E isso me perturba.

Vamos aos fatos.

Hoje não levei nenhuma cotovelada enquanto as portas se abriam. Ninguém limpou o suor usando minha camisa. Não vi grávidas ficando em pé, marmanjos no vagão das mulheres e, principalmente, não fui encochado por um gordo excitado. Agora me responda, Sr.Governador, para quê andar de metrô se não existe a possibilidade de ser encochado por um gordo excitado - ou, eventualmente, encochar um? Com todo o respeito, se eu quisesse viajar com tranquilidade, singularidade e frescor, pegava um ônibus executivo, quem sabe um táxi. Mas não: eu quero andar de metrô! Logo, espero que a companhia me ofereça um serviço de metrô legítimo, que tenha gente se empurrando na disputa por um assento e que viaje com mochila nas costas. Que se proponha a respeitar a legitimidade cultural desse tipo de transporte num país de terceiro mundo, e não transforma-lo diante a pressão de parte ínfima da população que exige, infelizmente, o mínimo de respeito. Poxa, agora eu vou fazer Pavuna x General Osório como se fosse Châtelet x Saint-Dennis? Tá achando que isso aqui é Europa? Sr.Governador, eu só quero continuar voltando para casa como nos bons tempos, imobilizado na multidão, tendo que pedir para um desconhecido coçar minha testa por não conseguir levantar os braços. O Sr. entende meu ponto? Aliás, o Sr. já sentiu o suor de um estranho no cangote? Ao menos sabe que sensação é essa? Acho que não. Mas isso não significa que o Sr. não seja capaz de compreender que eu não quero perder esse tipo de coisa, né. Afinal, esses são os velhos costumes! Que por anos firmaram-se como patrimônio púbico deste povo. Saibamos valorizá-los e preservá-los. Portanto, com esses novos carros o Sr. está passando por cima dos vários anos em que fomos transportados como gado e, consequentemente, por cima de nossa História.

Ao que parece, Sr.Governador, esses são tempos que não voltam mais. Tempo que todo carioca lembrará com carinho, vislumbrando nostalgicamente o agradável infortúnio que é ser um suburbano. Um dia espero que o Sr. entenda que o povo exige a dignidade de um glorioso retorno às raízes, aos dias em que éramos transportados sem o menor respeito pelas linhas ferroviárias de sua cidade. Se este dia chegar, o Sr. saberá onde nos encontrar: estamos em algum lugar entre as linhas um e dois do metrô, das 5h às 23h, confortáveis, frescos e civilizados, como nunca haveríamos de ser, NÃO FOSSE VOCÊ.

Atenciosamente,
Um de nós.