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O curioso caso do drogado do 2º andar

Investigações primárias

As suspeitas começaram logo na primeira semana de Sandro, o novo inquilino do conjugado 202. Logo pela manhã, Roberto pensou ter escutado uns gemidos estranhos no apartamento ao lado. Investigador, acordou um dia mais cedo, arrastou o sofá da parede de centro e concentrou-se nos ruídos do vizinho. Na lata! Ouviu algo como um "aaaaaaaarhhhg, que isso!". Intrigado, por mais dois ou três dias Roberto pôs-se a repetir o ritual. Até arrumou um estetoscópio com o cunhado, o clínico geral não oficial da família. No ofício, parecia um perito, chegava a passar legitimidade à pataquada, reconhecida pelo mesmo como "um serviço à todos os condôminos". O resultado, porém, não pudera ser outro. Sessões de gemidos, dia após dia: "uuuurrhh", "hmmmmmmmm" e "shhhhhhhhhh, eiiiita caralho!" foram minunciosamente percebidas por Roberto, que, conservador que só, entrou numa pilha de nervos.

Há de ser droga

"Há de ser droga! E droga pesada. Conheço bem esse tipo". Roberto indagava para a mulher. Preocupado com o péssimo exemplo que o novo vizinho poderia dar à sua filha, já com seus 17 anos, Roberto não se conteve dentro das calças. Enquanto o rapaz fazia "aquilo" religiosamente antes de sair de casa, por volta das 8 da manhã e ao retornar, já perto das 23, Roberto maquinava como avançar em sua empreitada individual de desmascarar o inquilino. Sandro, o tal novo vizinho, dividia parede com parede o segundo andar de um pequeno edifício na esquina da Soares Cabral com a Laranjeiras, pouco depois do túnel Santa Bárbara. O rapaz, bem jovem inclusive, trabalhava o dia todo fora, e ao que constava na ata do condomínio, na área de Tecnologia da Informação. Não para Roberto. "Eu sabia que esse cara tinha algo de estranho. Não fui com a cara dele desde que veio conhecer o conjugado. Há de ser traficante, só pode. Na idade dele o máximo(!) que eu conseguia trabalhando era o Catumbi. Agora veja você esse camarada querendo ganhar dinheiro mole", reclamava de noite com a mulher, que sempre concordava fazendo questão de não dar corda.

A confirmação

A petulância de Roberto era admirável. Preparou, em completa ardilosidade, uma arapuca para abordar Sandro no corredor, acompanhando-o dessa vez não apenas com os ouvidos presos à parede, mas vigilante através do olho mágico. Contudo, a abordagem foi simples e direta. Assim que Sandro abriu a porta, Roberto lançou-se ao corredor. Teve um choque. Petrificado, sequer conseguiu dar bom dia ao garoto, que passou com os olhos ardentes, lacrimejantes, em passos curtos e rápidos. Ainda assim, deu um saudoso bom dia e rumou em direção às escadas. Roberto simulou um esquecimento de chaves, tornou a abrir sua porta e voltou para seu apartamento, atônito. "Eu sabia! Eu sabia!" disse à mulher sem deixar que a filha ouvisse, e continuou "Tinha que ver como ele andava como um marginal! Há de ser cocaína! E logo de manhã? Tinha que ver a postura dele, Carmen, os olhos vermelhos, tinha que ver. Eu sabia! Que cara escroto!". A mulher consentiu com a cabeça enquanto se vestia para mais um dia de trabalho e completou com um singelo "deixe só sua filha te ver usando esse palavreado". Indiferente, Roberto tratou de espalhar a notícia pelo edifício. Em pouco tempo todos os condôminos já sabiam do caso do drogado do segundo andar.

Cinismo inconveniente

Certa sexta-feira, sem que Roberto conjecturasse nada, os dois se encontraram subindo as escadas. Sandro, por sua vez, levava um engradado de cervejas numa sacola de plástico. Roberto, malicioso, já pensou que o garoto era cheio de vícios, um aspirante ao alcoolismo. "Oi, seu Roberto", disse Sandro para espanto do outro, "Essa semana conheci sua filha aqui pelos corredores. Gente fina, de família". Roberto, boquiaberto e sem saber o que dizer, sequer fez esforço para filtrar os pensamentos maldosos que atravessavam sua cabeça, "É, mas ela não bebe cerveja" - a frase logo foi atingida por um pensamento auto-recriminador, além da vergonha de si próprio - Sandro, sempre complacente, foi educado e, na opinião de Roberto, muito do cínico. "Que isso, longe de mim. Essas cervejas são para uns primos que hoje vêm me visitar. Eu nem bebo, vou ficar no suco", riu. O diálogo findou-se com a chegada do segundo andar e Roberto entrou em casa cerrando os dentes, certo de que aquela sexta-feira seria o dia em que todos os viciados da Zona Sul usariam variados tipos de drogas bem ao lado de seu apartamento. Sua filha, veja só, se não abrisse o olho poderia estar lá, cair na lábia, caso ficasse dando trela ao vizinho. A noite da menina terminou com um sermão de duas horas.

Maldita providência 

Certo de que deveria tomar providências, Roberto pôs-se a ligar para a polícia dois dias depois. Como tinha conhecidos na 5ª DP, ligou diretamente para o celular de um bom conhecido dos tempos da escola. "Gomes, vou te dar um trombadinha de bandeja. Cara barra pesada. Um moleque, garoto mesmo, mas barra pesada. Traficante, meu amigo. Decerto! Há de ter muito pó na casa desse camarada". Assim, três homens fardados irromperam a manhã de uma terça-feira na esquina da Soares Cabral com a Laranjeiras, subiram as escadas e bateram a porta do 202, no polêmico conjugado de Sandro. "Alô, Sandro! Polícia", e nada. "Alô, Sandro, nós vamos entrar!". Sem esperar ou ponderar por três minutos que fosse, Gomes deu um tapa no ombro do cabo Rafael que, por sua vez, entendeu o recado. Enfiou o pé na porta do garoto com tanta violência que a fechadura foi parar do outro lado do conjugado. Os três sacaram suas armas e imponentes foram procurar o delinquente. Roberto, em êxtase, foi atrás.

O curioso caso do drogado do segundo andar

Quando os três mosqueteiros, seguidos por D'artangnan, chegaram ao banheiro de Sandro, lá estava ele, submerso numa situação patética. Vestia uma cueca roxa estilo tanga, meias sociais pretas e terminava sua higiene bucal. Com os olhos esbugalhados em tom vermelho escarlate, deixou o pote de Listerine cair no chão e prontificou-se a cuspir o resto do anti-séptico na pia, seguido de um ardente "ssshhhhhhh, aaarrrhhhhh". No fim da sessão, uma lágrima involuntária cruzou seu rosto.

Sem ressalvas

Visto que o real problema do drogado era gengivite, Roberto afundou-se em vergonha. Foi retaliado pelo síndico, que além de multá-lo enviou uma carta de reprovação explicando o mal entendido a todos os condôminos. Também foi obrigado por sua mulher e filha a pedir desculpas ao especialista em Tecnologia da Informação, algo que nunca chegou a fazer, apesar de ter dito o contrário para elas. Condolente, trocou a fechadura da porta do rapaz e comprou um frasco de Listerine sem álcool de presente para ele, que, sempre complacente, foi educado e aceitou.