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soturno

(eu cato minhas)
foças
(refaço suas)
dobras
(destaco nossas)
sobras
(pra enfim dormir nas)
sombras

lágrimas de plástico

chove profundo no teatro da cidade
chove uma chuva cenográfica

as gotas borram a maquiagem
e desenham no rosto lágrimas

os palhaços continuam sorrindo
dentro do choro de tinta
e dançam uma mímica melancólica

profundo chove na cidade teatro
chove chuva que cheira cherume

a boca com brasa disfarça
dos cuspidores de fogo o mal hálito da cachaça

as garças decolam dos rios
com as coladas asas de óleo
e aprendem a prisão que é voar ilusão

chuva de verdade, aqui, é realismo fantástico
no circo das lágrimas de plástico.

velório

da vida, sinto saudade
nostalgia causada pelas carinhosas memórias que tenho guardadas

é da vida que sinto saudade!

e por isso, já não temo em nada
a morte que deveria ser evitada.

necromância

é doce, é gostoso... e mata muito também:
o açúcar. e o amor.

então enforque-se na corda da liberdade!
esfaqueie-se com a lâmina do sexo.
sangre as ressacas da alma.
cuspa os pulmões dos tragos mais demorados.
frite com as úlceras da mente.
suicide-se! todos os dias,

na manhã seguinte,
volte dos mortos pra contar o que viu.

janaína

hoje conversei com as águas
e pude ver a mágoa das ondas

é curioso, mas a ansiedade do oceano apenas reforça sua própria e terrível solidão
a solidão de ser imenso, poderoso, e não caber dentro de si

olhei para ele, e no minúsculo humano desejo de ajudar,
mergulhei.
e afoguei-me.
para que visse que sou frágil, também. para que não se sentisse só

até ser cuspido de volta pras areias
sentindo-me acariciado. talvez compreendido
e um pouco mais amigo... do mar.

transa

que vá-se o vício
até o sumiço
e vá-se fase fácil
até o cansaço

descontrole

sangro por dentro
e me afogo na carnificina

mas a bebida alivia as dores da carne
e os males do açougue.

existência

tempos de sombras,
bom pra aprender a enxergar no escuro.
bom pra entender o brilho do invisível.

e entre o terror dos monstros e o otimismo da luta, vem uma tristeza abstrata por coisas que não necessariamente aconteceram. mas os sentimentos só me confirmam que somos vitoriosos no projeto de pessoas que nos tornamos: humanistas!

hoje somos uma versão do futuro que queremos:
é tempo de E X I S T Ê N C I A

amor acima de tudo. humanidade acima de todos!

apneia

o peito vira corredor de ar frio
e o tempo soluça compulsivo

saudade não é sala de espera/ essa é a impaciência

então alimentem os pássaros, vamos voar
pra lutar/ sem enlatar, e nunca mais empacotar

então chega bem tarde, vamo vivê essa baixaria
toda noite é dia/ pra nossa poesia

pq se assim tá colorido/ justifica a sensação
 se não fosse dolorido/ essa apneia não seria de coração.

baleias

das baleias quero as asas e o ventre;

uma pra voar além do que imaginam ser o teto do oceano
outro pra entrar e dormir
e me deixar levar à imensidão abissal
pra sentir o volume da água e chegar ao inconsciente
no coração do mar.

re nascimento

Semente
Bruta
Seiva
Ininterrupta
Química
Turva
Simbiose
Gratuita
Liberdade
Fortuita.

o mergulho

fecha os olhos e mergulha,
agora vai, voa
pode respirar,
traz o céu pro mar,
que a água é teu lar
e nunca falta ar
no infinito azul.

covardes verdades

foi um dia esquisito na cidade,
quando começou a chover verdade.

a violência das palavras quebrou janelas
e parou algumas máquinas.
na tv o noticiário subestimava,
lá fora o povo se desmassificava.

covardes buscaram marquises,
poderosos se trancaram em casa,
mas muitas crianças saíram às ruas
e famílias se encontraram nas praças.

a chuva fez estrago
destruiu, libertou e esclareceu.
deixou sequelas irreparáveis
a quem não se escondeu.

é, foi um dia esquisito pra quem tava na rua...
e até hoje me arrependo quando abro meu guarda-chuva

diáspora da solidão

Ele traz consigo a desumanidade da juventude
Aparece (toca, atravessa, manifesta, usa, põe, dispõe) e desaparece.

É um espectro. Um fantasma.
Caminha, rasteja. Soturno, espírito baixo.

Tatua experiencias trágicas
poesias, angustias e frustrações.

Da carne, desencarna
Porque a solidão é maior quando compartilhada entre corpos vazios.
Vinhos fermentam e azedam
Cigarros queimam e enjoam

E o tempo não nasce ou morre. Apenas se arrasta.

desejo por ele próprio

a vibração é opaca,
fosca
ocre
oca
loca
e me mata pela boca.

a denúncia do elevador

No prédio onde eu moro, o elevador fala. Quem já veio aqui, sabe.

É uma voz feminina. Ela dá bom dia, boa noite, fala o dia da semana, a hora e a temperatura. Super educada. Ali no elevador, diante do vazio dos corredores, ela é uma companhia improvável pra quem quer receber um pouco de atenção quando sai de casa. Mas a principal função dela, eu tenho percebido, é denunciar uma grande de crise moral no Edifício Realeza.

Não é de hoje que eu percebo, já são quase oito meses aqui: Vagabundo entra no elevador, ganha o CARINHO de uma voz metálica, recebe um bom dia maneiro, tal, chega no térreo e é INCAPAZ de fazer o mesmo com o porteiro. Isso quando também não o faz com quem já tá no elevador. Na boa: EU BOLO com essas pessoas.

Essa não é uma discussão sobre educação e engana-se quem pensa que um "bom dia, tudo bom?" é mera formalidade. Não é. Essa é uma cordialidade que tira as pessoas da invisibilidade, que as transforma em alguém, que expressa zelo e humildade. É um mimo, um acontecimento que quebra o gelo, uma demonstração de carinho de uma pessoa pra outra, ainda que sejam desconhecidas.

O mundo tá realmente entrando em crise. No mercado tem alface picadinha e lavada, cenoura ralada e bolo que não foi feito pela sua vó. Até escondidinho de carne industrializado dá pra comprar. Só que agora MECANIZARAM O BOM DIA DO MEU PRÉDIO! Estamos nos afastando da autêntica felicidade que existe nas pequenas coisas, da beleza simplista da intimidade humana, do elo que nos conecta. Enfim,

Não vejo muito pra onde ir. Acho que é isso.
Bom dia! Hoje é quarta-feira, 28 de março, 10 e 50 da manhã. Fazem trinta e dois graus.

areia movediça

não tem intensidade.
não tem som,
força,
ou propósito.

é uma frequência simplista.
como o toque de uma única nota musical
que se estica e se arrasta
despreocupada em acabar.

(não acaba)

lentamente te convida
e quando você pisa
(silêncio)
era areia movediça.